
> Assim que eu pisei na sala de aula, a primeira pergunta que eu ouvi, antes mesmo do bom dia, foi: "Professor, o senhor vai dar visto no dever de casa?". Aquilo era um indicativo da cultura escolar que aquele aluno e seus colegas compartilhavam. "Vou", respondi rápido e rasteiro. Quando olhei para a sala após deixar minhas coisas na mesa, todos já estavam com suas apostilas abertas na página da lição.
Saquei o meu carimbo automático. Ele, por coincidência ou não, tem um som de gatilho quando pressionado sob a página. Cláckt. "Prof. Felipe Schadt VISTO" estava impresso na página. Olhei para o primeiro agraciado com a chancela de tinta vinil de secagem rápida. Ele estava satisfeito com o "prêmio" em forma de visto. Já eu, me sentia um carrasco que livrava da execução um bem-aventurado obediente.
Cláckt! Cláckt! Cláckt!
Meu carimbo me tornava aquilo que eu mais temia me tornar.
Câmbio!
...
A primeira vez que eu ganhei um visto no meu caderno foi da professora de artes da 4ª Série do ensino primário, na Escola Estadual de Primeiro Grau Nair Ronchi Marchetti. Tínhamos que fazer um desenho livre e eu era fissurado em arte abstrata. Com minha caixa de lápis de cor de 48 cores - uma ostentação para época -, eu misturei todas que pude em um caos organizado. Ganhei um visto seguido de um parabéns e três carinhas felizes. Eu me senti o próprio Salvador Dali.
Mas o Marco Aurélio existia e se eu era Dali, ele era Da Vinci. Desenhou seu cachorro, um pastor alemão hiper realista usando apenas lápis preto. O nível do desenho era tão absurdo que até efeito de luz e sombra tinha. O visto que ele ganhou tinha um parabéns com três pontos de exclamação e dez, DEZ carinhas felizes. Com uma única cor ele humilhou minha caixa de lápis da Faber Castell.
Acho que foi naquele dia que eu conheci a inveja. Eu queria muito alcançar o visto com exclamações e dez carinhas felizes, mas isso nunca chegou a acontecer. E foi nesse momento, eu acho, que dei uma de raposa e as uvas e passei a desdenhar do visto do professor. Ganhava os meus, mas por puro protocolo, por pura obrigação de ganhar.
Deve ser por isso que eu nunca utilizei esse recurso para conferir o cumprimento de uma atividade. Primeiro porque eu comecei a minha jornada como professor já no ensino superior. Eu não faço nem chamada na faculdade por julgar que quem vai para minha aula tem que ir porque quer ir e não para ter uma presença forçada. Imagina que eu iria conferir se o aluno fez ou não um dever de casa. Alias, o dever de casa da faculdade é leitura e conferimos se o aluno leu ou não na hora da prova.
"Não é pela nota que você tem que fazer isso, é porque fazer isso vai ampliar a sua capacidade de pensamento e melhorar sua vida em qualquer âmbito que for"
Para dizer que eu não fiscalizava as atividades dos meus alunos universitários, teve uma época que eu inventei de pedir relatórios de leitura. Funcionava assim: ao final da aula, eu passava um texto para ser lido para a semana seguinte, para que o aluno já viesse preparado para as discussões do próximo encontro; então eu pedia que ele enviasse para o meu e-mail um relatório de leitura com fichamento. No começo foi bem interessante a experiência, mas depois eu percebi que eu não conseguia fazer mais nada pois eu precisava ler quase 50 relatórios por dia. Impossível. Além do que, percebia que os alunos compartilhavam informações entre eles e os relatórios eram basicamente iguais, mas eu não tinha como provar que eles estavam dividindo essa tarefa. Desisti.
Para os alunos que realmente entendiam a dinâmica e a importância da atividade, eles souberam aproveitar e melhoraram muito na participação nas aulas e nas provas. Infelizmente, ler não é uma prática comum entre os estudantes brasileiros segundo pesquisa feita em 2023 pelo Centro de Pesquisas em Educação, Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede). Qualquer incentivo à leitura, ajuda.
Mas na minha cabeça, ler não deveria ser uma obrigação. Ler para fazer o relatório para ganhar nota é um absurdo para mim. "Tudo tem que valer nota se não o aluno não faz", frase dita por quase todos os professores que cruzaram meu caminho.
Quando eu conheci a Educomunicação, percebi que haveria outra maneira de aprender dentro da sala de aula, a da autonomia. Dar ao aluno a chance de escolher e incentivá-lo, não com nota, a fazer o que deve ser feito porque é o melhor para ele. "Não é pela nota que você tem que fazer isso, é porque fazer isso vai ampliar a sua capacidade de pensamento e melhorar sua vida em qualquer âmbito que for", dizia toda vez que um aluno levantava a mão e perguntava se o trabalho em questão valia nota. Insatisfeito com a minha resposta, ele voltava a perguntar e eu respondia derrotado "sim, vale 2 pontos na média".
Uma vez tive coragem e pouca paciência com uma aluna de jornalismo. Tudo que ela fazia ou se propunha a fazer, perguntava se valia nota. Uma vez, pedi para que lesse um texto que eu julgava importante para o desenvolvimento deles, ela esbravejou dizendo que só leria se valesse nota. Perguntei o nome e o RA (Registro do Aluno) dela. Ela se assustou, pensando que eu iria dar alguma advertência ou tirar seus pontos. Depois de anotar seu nome e número, disse para ela: "Pronto, você já está com dez na minha matéria, pode ir embora se quiser. Já que pra você tudo é pela nota, agora não precisa fazer mais nada. Pode sair". Ela ficou em estado de choque, não saiu e pediu desculpa no final da aula. Não faltou em nenhuma aula minha e nunca mais questionou sobre notas. Mantive minha promessa, ela ficou com 10.
Em um dos colégio que eu trabalho, o dever de casa vale nota na média. Foi a maneira que encontraram de incentivar os alunos a fazerem as lições e, pelo visto, funciona bem. Professores e alunos já estão acostumados com essa cultura e eu precisaria me adaptar.
"Para a aula que vem, fazer os exercícios da página 7, 8 e 9", frisei antes de sair da sala do 8º Ano do Fundamental II. Comecei a calcular a logística daquilo. Teria que assinar apostila por apostila e no final do bimestre, contar quantas assinaturas o aluno ganhou e calcular para dar a nota de dever de casa. Eu sabia que iria perder um tempo assinando as apostilas. A solução era uma só: um carimbo de visto.
Assim que mandei fazer o carimbo, lembrei na hora de Michel Foucault e sua famosa obra "Vigiar e Punir". O que eu estava prestes a fazer era instrumentalizar a vigilância e a punição. Iria atestar que o dever de casa foi VISTO e, portanto, feito. Para os alunos que andam na linha e fazem a chancela do vigia que tudo vê. Para aqueles que não fazem o que lhe é pedido, o vazio na página para combinar com o vazio das perguntas sem respostas e do não reconhecimento seguido da punição da nota baixa.
Hoje, uma semana depois do combinado, cheguei na sala de aula. Era o dia de conferir os deveres de casa. Os próprios alunos estavam ávidos pelo prêmio em forma de visto. Tirei meu carimbo da caixinha, e um a um fui carimbando as apostilas. Enquanto meus alunos se sentiam satisfeitos, eu me sentia um capataz verificando se tudo estava nos conformes.
"Professor, eu não fiz", disse um aluno muito infeliz com a apostila vazia. Perguntei o porquê e ele respondeu que havia esquecido. Eu me abaixei para ficar no mesmo nível que ele e alcançar seus olhos. "Não tem problema, só não vou poder te dar o visto. Mas preste bastante atenção na correção e anote as respostas. O importante é fazer, nem que seja comigo". Deu para ver que o alívio tomou conta dele. Mas adverti na sequência. "Tenta não se esquecer dos próximos, tá?". Ele concordou firmemente com a cabeça.
Foi a deixa perfeita para eu falar da importância de se fazer o exercício em casa, mas que tão importante quanto, era a fase da correção dele em sala de aula. "Educação é correção de rota, é ajuste. Se você errar, vai ser aqui comigo que você vai corrigir e aprender com seu erro", disse antes de parafrasear Antonio Camacho, antigo professor de matemática e hoje secretário de Educação de Campo Limpo Paulista. "O erro é o melhor caminho do acerto".
Eu fiquei em conflito com o lance do carimbo. Esse tipo de fiscalização força uma conduta que deveria ser natural. Será que meu aluno só faz o dever por causa do visto? Se for, acho que erramos, pois ele deveria fazer o dever por entender que é importante para o seu desenvolvimento. Deliberar com você mesmo e não por causa do medo que a fiscalização traz é o que chamamos de "moral". Sabe o que é eu dizer "faz isso pra mim na moral"? Não faça por causa do medo do castigo, faça porque você chegou a conclusão de que é o certo fazer.
O que está sendo ensinado para toda uma juventude - desde quando eu era jovem - é o seguinte: enquanto estiverem te vigiando, faça o certo e se comporte, mas quando não estiverem te vigiando mais, aí você pode soltar a franga e avacalhar. Nesse contexto, os jovens nunca aprenderão o que é agir na moral, pois nem na escola eles têm chance de agir moralmente. Mas é nesse mesmo colégio que a filosofia é disciplina a partir do 6º Ano Fundamental II. Um sinal de muita esperança para o desenvolvimento do pensamento crítico e moral desde muito cedo.
Eu precisava começar a aula. Já havia vistado e corrigido o dever. Tema do dia: AUTONOMIA. Dei um sorriso, pois eu sabia que seria nessa aula que eu iria me redimir por causa do carimbo.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é Conquista! -FS
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