Felipe Neto, o presidente de um povo que não lê num país onde o jornalista não apura
- Felipe Schadt
- 4 de abr.
- 5 min de leitura

> Na última quinta-feira (3), o youtuber e influenciador, Felipe Neto, deu uma aula de sociologia, literatura e marketing ao divulgar um vídeo no qual ele se lançava como pré-candidato à presidência da república.
No vídeo, Felipe Neto faz um discurso contundente e cheio de frases de efeito. Uma delas, o influenciador dizia que seria como um “irmão mais velho” para o povo brasileiro. Em um cenário com uma imagem desfocada de um grande olho, Felipe Neto ainda divulgou que lançaria uma nova rede social, a “Nova Fala” no qual ele iria não apenas ouvir os anseios da população, mas vigiar o país de perto com a plataforma.
Para quem leu o aclamado - e na minha humilde opinião o livro mais importante do século XX - 1984, de George Orwell, entendeu na hora que o suposto pronunciamento não se passava de uma paródia. “Irmão mais velho”, foi uma clara referência ao Grande Irmão, ditador da Oceania (região fictícia do livro); já o aplicativo “Nova Fala” é uma representação direta do conceito da Novilíngua, vocabulário que vai, diferente dos outros, retirando palavras de seu dicionário; por fim, o grande olho no cenário não deixava dúvidas sobre a frase mais famosa do romance de Orwell: “O Grande Irmão vigia você”.
Para quem não leu a obra distópica, o vídeo de Felipe Neto foi levado a sério até demais. Bastava uma rápida passada pelos comentários do vídeo do influenciador que mensagens de apoio e repúdio eram vistas aos milhares (mais de 70 mil para ser um pouco mais preciso). Mas além disso, os comentários também invadiram as publicações da imprensa sobre a suposta pré-candidatura.
Que o brasileiro médio não lê, não é nenhuma novidade. Segundo pesquisa divulgada no site da Rádio Senado, em 2024, 53% dos brasileiros se consideram não-leitores, ou seja não leram nenhum livro em três meses. Isso significa uma perda proporcional de 7 milhões de leitores nos últimos quatro anos. Segundo a reportagem de Julia Lopes “o cenário é ainda mais preocupante quando se observa a leitura de livros inteiros: 73% dos brasileiros, 148 milhões, não completaram nenhuma leitura”.
O que me chamou a atenção, muito mais do que o vídeo, foi a cobertura que parte da grande imprensa deu ao fato. A CNN Brasil, por exemplo, além do texto divulgado no seu site, no qual trata o pronunciamento como sério, no seu telejornal CNN Arena, o apresentador Leandro Magalhães leu uma nota coberta (a informação acompanhada de imagens) sobre o caso destacando falas do influenciador. Em nenhum momento o canal cogitou ser uma paródia.
Já o UOL, que tem seu jornalismo vinculado ao grupo Folha, chega a conjecturar possíveis cenários e especular que o pronunciamento aconteceu em momento politicamente estratégico. Ou seja, o UOL não só levou o vídeo a sério como analisou todo o contexto político que envolvia a suposta pré-candidatura de Felipe Neto.
Por fim, a Veja foi uma das únicas que levantou a bola de que não dava para saber se o pronunciamento era sério ou uma jogada de marketing do youtuber. Porém, a nota escrita por Nara Boechat, gerou repercussão com seu título direto e sem margens para dúvida: “Felipe Neto anuncia pré-candidatura à Presidência da República”. O caso da Veja é o mais curioso dos três pois, após descobrirem as verdadeiras intenções do falso pronunciamento, lançaram uma nota - escrita pela mesma Nara Boechat - chamando a atitude de Felipe Neto de “papelão”.
Essa preguiça na hora de apurar é um sintoma de um jornalismo decadente que esqueceu seu principal objetivo
Eu ensino em minhas aulas de Teoria do Jornalismo um conceito muito famoso entre nós - jornalistas - que é a Teoria do Espelho. Essa teoria, moda no período positivista, dizia que o jornalismo deveria refletir em suas reportagens exatamente o que era visto no fato noticiado, ou seja, como um espelho, a informação deveria ser um reflexo do fato, objetiva e direta. É graças a essa teoria que temos a falsa impressão de que o jornalismo deve ser imparcial, uma utopia, visto que o jornalismo é uma atividade humana e, portanto, é feito de subjetividades e visões de mundo.
Na mesma aula, falo o quanto essa teoria está ultrapassada e que não condiz com a realidade das redações mundo a fora. Já que o jornalista não vai conseguir refletir com exatidão o fato, ele deve apurá-lo da maneira mais profunda possível para evitar deixar algo importante passar. A apuração é o mantra da vida de um repórter e não fazê-la é um crime jornalístico.
Se CNN, UOL e Veja tivessem apurado melhor o pronunciamento de Felipe Neto, teriam sacado na hora que se tratava de uma paródia ao livro de George Orwell. Claro que não dava para ter certeza e sem poder cravar e evitar uma “barrigada” - jargão jornalístico para soltar uma informação incompleta -, os veículos deveriam fazer exatamente o que se espera deles: apuração. Ir atrás, investigar, falar com fontes ligadas ao caso, cruzar dados e depoimentos, verificar documentos... Se mesmo assim não conseguir a informação correta, o jeito é esperar e só soltar a notícia quando se tem certeza do fato.
Mas quem disse que se pode fazer isso hoje em dia, em tempos em que o tempo é curto e acelerado? Reclamaram que o Felipe Neto fez um click bait (expressão que significa uma espécie de isca para você consumir o conteúdo a partir de uma informação sensacionalista), mas as notícias sobre o vídeo dele também são. Os veículos que mencionei e tantos outros queriam que suas matérias fossem clicadas. Funciona assim: eu vejo uma fato que tem apelo popular, não apuro porque não dá tempo, escrevo um parágrafo a respeito, crio um título chamativo e sensacionalista, solto minha matéria nas redes e espero pelos cliques.
Essa preguiça na hora de apurar é um sintoma de um jornalismo decadente que esqueceu seu principal objetivo: Noticiar o que é de interesse público. Na verdade, esse lema de primeira ordem foi subvertido para “Noticiar o que é de interesse do público”. O jornalista aprende na faculdade a ser esse filtro social, um curador dos fatos capaz de identificar o que é e o que não é de interesse público. Muito diferente de um jornalismo que está preocupado com o interesse do público e, por isso, preenche suas páginas com informações que geram engajamento e não informação de relevância social.
No fim, o vídeo do Felipe Neto era de fato uma campanha publicitária, uma jogada de marketing para o lançamento de um audiobook de 1984 interpretado por Lázaro Ramos como Winston, Alice Carvalho como Julia, Mateus Solano como O’Brien e Milhem Cortaz como o Grande Irmão, produzido pelo aplicativo Audible.

Espero que toda essa história incentive as pessoas a lerem mais e tudo pode começar com um audiobook dramatizado, no qual pode ter sucesso na retenção da atenção do usuário por ser "mais divertido" e imersivo que a própria leitura no papel. Eu sou adepto de audiobooks e amo a experiência. Minha rotina não me permite parar por longos períodos para ler como eu gostaria, mas com o recurso sonoro, continuo consumindo livros e mantendo minha meta de leitura.
Eu também espero que essa história ajude a imprensa a perceber que precisa olhar para tras e voltar a praticar o bom e velho jornalismo paciente e preciso que fez dessa profissão tão importante para manter o funcionamento de uma sociedade livre e democrática. É verdade que os jornais precisam do público, mas também é verdade que o público precisa dos jornais. O desafio é descobrir como convencer as pessoas disso.
Felipe Neto escancarou dois problemas sociais de grande relevância, deve ter ganho uma baita de uma grana e incentivou as pessoas a conhecerem sobre um dos maiores escritores de todos os tempos. Isso já é muito mais do que fez um certo ex-presidente aí.
Conhecimento é conquista.
-FS
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