> Seguramente O Auto da Compadecida é o filme que eu mais assisti na vida. Desde a época do VHS até a era dos streamings, eu vi tanto as aventuras de João Grilo e Chicó que sou capaz de falar de cor e salteado as falas desses dois e de tantos outros personagens. É o meu filme favorito e por isso faço questão de ver e rever sempre que tenho vontade.
O amor por essa história começou com a minissérie, cresceu com o filme e solidificou com a peça. Inclusive, quando eu atuava no auge da minha adolescência, meu grande desejo como ator era interpretar Chicó nos palcos. Nunca aconteceu. No máximo, usei a primeira cena do clássico de Ariano Suassuna para um teste de atores em uma cia estudantil de teatro. Eu fui tão bem na audição que ganharia o papel principal do espetáculo que o grupo encenaria meses depois - que para minha tristeza não era O Auto.
Quando anunciaram uma sequência para o filme, 25 anos depois de sua estreia na TV como minissérie, eu fiquei feliz e empolgado. Seria a chance de ver uma nova aventura dos meus personagens brasileiros favoritos e desde o seu primeiro teaser em 7 de maio até a sua estreia nos cinemas em 25 de dezembro, eu ficava cada dia mais animado.
Assista-o, tenha as suas impressões e volte aqui depois
"Vou comprar nossos ingressos", disse eu para Carol assim que voltamos da viagem que fizemos para o natal. Eu queria ter visto na estreia, mas a minha agenda não permitiu que eu fizesse parte dos 394 mil espectadores do longa no seu primeiro dia, a maior estreia nacional em 2024. Fileira G - minha favorita -, centro da sala, pipoca no colo e um coração cheio de espaço para receber os dois maiores palhaços do cinema brasileiro.
E eu fiz questão de, antes do filme, me blindar de qualquer tipo de análise, comentário, imagens de bastidores ou qualquer coisa que "contaminasse" minha experiência. E é por isso que eu faço a você, caro leitor e cara leitora, uma advertência: que pare de ler esse texto caso ainda não tenha assistido o filme. A partir de agora irei inundar os próximos parágrafos de impressões que eu tive sobre o longa metragem. Assista-o, tenha as suas impressões e volte aqui depois para concordar ou discordar de mim com a propriedade da sua própria experiência. O que você pode saber de antemão é: O Auto da Compadecida 2 é poético, filosófico e emocionante, mas eu não gostei.
O filme é poesia pura desde a primeira cena, no qual Chicó - o grande poeta da história - narra a "vida, paixão e morte" do lendário João Grilo. O texto do personagem vivido por Selton Mello caminha de mãos dadas com o cenário de uma Taperoá triste, moribunda mas ainda sim cheia de encantamento e lembrança de um tempo que já não existe mais. O cenário, assim como o texto, é poesia: a famosa igreja e sua praça são retratadas de uma forma lúdica e, de certa maneira, caricata.
Os personagens seguem o mesmo tom poético. Do figurino à interpretação, velhas e novas figuras quase que dançam em cena, com aparições apoteóticas, falas retumbantes e gestos exagerados ao bom estilo do "humor pastelão" presentes nos desenhos animados do século passado.
E por incrível que pareça, a aparição "menos pastelônica" de todas foi a do personagem principal, João Grilo, que trouxe para o filme a dose certa de filosofia, fazendo do amarelo mais amarelo do cinema um indagador de carne, osso e um restinho de cabelo. Em uma das cenas, ele confronta um sujeito que está com medo de morrer e, ao melhor estilo epicurista, diz mais ou menos assim: "Pra que medo de morrer, homem? Se quando você está vivo a morte ainda não chegou e quando ela chegar você não estará mais vivo para se preocupar com ela". Na mosca!
E já que o tema da "morte" é tão presente, em seu segundo julgamento - pois é, João Grilo que já havia ressuscitado, morre outra vez -, a grande discussão é sobre intencionalismo. "Temos que saber qual era a intenção de João antes de julgá-lo", clama Thais Araújo como Compadecida ao sua filho Jesus, interpretado pelo próprio Matheus Nachtergaele que fazia a versão boa (Jesus) e má (Diabo) de João Grilo. E se de boa intenção o inferno está cheio, no Auto da Compadecida 2 ele ficaria vazio e Immanuel Kant se daria por satisfeito.
O ponto alto do filme é de longe o seu final, no manifesto de amizade entre João Grilo e Chicó embalado pelo hino miltoniano "Canção da América". Ali, naquele momento, não sobrou um pé de cristão que não tenha derramado uma lágrima pra contar história. O amor fraternal entre dois sujeitos que sabem que separados têm mais chances de sobreviverem do que juntos, uma ode ao amor platônico que jamais pode se concretizar.
Mas apesar de tudo isso, eu não gostei do filme.
O roteiro do filme força a barra para dar aos protagonistas situações e prezapadas no qual eles tenham que escapar com a esperteza que fizeram deles os ícones de um anti-heroísmo aceitável. Além disso, as resoluções dos problemas que eles mesmos se enfiavam não foram criativas, outra marca inconfundível da dupla.
A publicidade nada discreta me causou muito desconforto. Eu entendo a dificuldade de se fazer cinema no Brasil e que a iniciativa privada é, na maioria das vezes, a fonte de dinheiro salvadora quando o Estado falha em apioar a cultura, mas o que eu vi no Auto 2 é exageradamente ruim. A publicidade não estava na tela de início - como é comum ver antes do filme começar -, mas sim dentro da trama. Uma marca de cerveja, outra marca de alimentos surgem no meio da trama sem nenhum pudor. Mesma trama que em dado momento critica a maneira que a publicidade é usada para vender os produtos de um dos personagens.
A atuação também me incomodou. É teatral demais. E olha a ironia do destino: O Auto da Compadecida tem raízes na literatura de cordel, é escrita para ser uma peça de teatro que estreia em 1956 e que só depois de mais de uma década, ganha algumas versões cinematográficas, uma com Regina Duarte no "A Compadecida" (1967) e outra com Os Trapalhões (1987). Mas só foi Guel Arraes - que era vizinho de porta de Ariano Suassuna - quem ganhou a benção do escritor e imortal pernambucano. Tenho a impressão que o Auto 2 (também dirigido por Arraes) quis homenagear essa gênese e levar o teatro para o cinema.
Essa teatralização filmada me incomodou. Tudo era "pastelão" demais, exagerado demais, apoteótico demais... Essa história, contada em um desenho animado teria funcionado muito mais para mim, pois algumas cenas e interpretações ficaram "cafonas" e durante o filme eu me pegava pensando: "Essa cena feita em uma animação estilo Tom e Jarry, Pica-Pau ou até mesmo Pernalonga, teria sido muito engraçada". A mesma cena feita por atores - os melhores que temos, aliás - soou meio boba. E o filme é recheado de cenas assim.
E veja que nem estou fazendo comparações com o primeiro longa, mas é inevitável você não revisitar a história original após sair da sala de cinema meio decepcionado por não ouvir nos créditos finais "Presepada" (do grupo pernambucano SaGrama), a clássica música tema que ficou famosa com a "gaita benzida pelo próprio Padre Cícero" tocada por João Grilo.
O dono da obra, Ariano Suassuna, deve ter feito suas comparações quando assistiu a minissérie em quatro capítulos dirigida por Guel Arraes para a Globo em 1999. Segundo entrevista dada pelo diretor, 20 anos depois da estreia da minissérie, para a repórter Cristina Padiglione, para a Folha de São Paulo, Suassuna teria assistido o primeiro capítulo sozinho e só permitido a companhia de seus familiares no último episódio.
O próprio Guel Arraes confessou na mesma entrevista não gostar de revisitar a obra ou assisti-la. Mas teve que fazer isso para a remasterização da minissérie para o Globo Play. Não houve muitas mudanças estruturais na cenas, mas a que teve ficou a olhos vistos e desagradou o público. A cena em questão é a do julgamento, no qual um trabalho de pós-produção refez com recursos de Chroma Key os cenários do céu e do inferno. No lugar das pessoas sofrendo em agonia no meio do fogo (versão original), esqueletos animados dançando foram colocados para representar o reino do diabo assim que ele abre a porta para se apresentar no julgamento de João e cia.
Isso tudo para mostrar que mexer com uma obra quase imaculada da cultura brasileira é perigoso o bastante para deixar preocupado desde o autor até o público. Mas uma tecla que o elenco do filme em entrevistas durante esse ano bateu constantemente é: o Auto 2 é uma homenagem e temos que julgá-lo tal qual seu personagem principal o é, ou seja, pela sua intenção.
A homenagem ao primeiro filme se tornou efetiva pra mim a partir do momento que eu assumi que toda história era a partir do olhar do Chicó, um poeta inveterado que fez da história que viveu com seu grande companheiro uma grande obra de arte. Talvez seja exatamente isso que o filme quer de si e ele dá sinais de que eu possa estar certo na sua última cena, no qual Chicó toma para si a responsabilidade de um contador de histórias.
"Ok, Felipe. O filme tem seus defeitos, mas você disse que ele funciona como a homenagem que ele se propôs a ser. Como é que com essa conclusão e com a sua afirmação de que o filme é poético, filosófico e emocionante, mesmo assim você não tenha gostado?", você pode me perguntar. Minha resposta, é óbvia:
Não sei, só sei que foi assim.
Conhecimento é conquista
-FS
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