> Mesmo se eu puxar fundo na minha memória, não vou me lembrar de quando deixei de acreditar em Papai Noel. O bom velhinho ficou presente na minha vida mesmo depois de eu ter crescido. Além das crianças que povoavam a família, meu tio, gordo, fazia as honras de se vestir de vermelho, repetir a exaustão o “ho ho ho” e chamar um por um para receber seus presentes comprados nos shoppings.
Em algum momento passei a não acreditar em Papai Noel, mas sempre gostei da sua presença e do que ele representava. Lembro do choque que eu tomei quando ouvi pela primeira vez amigos roqueiros cantando a plenos pulmões que o Papai Noel era um “porco capitalista que presenteava os ricos e cuspia nos pobres”.
Já na faculdade de Comunicação eu descobri que o personagem era, na verdade, uma grande campanha da Coca-Cola para “vender a felicidade” na época do natal. “Não sei se é um porco, mas com certeza ele é capitalista”, pensava.
Com o passar do tempo e com mais consciência de classe, a máscara dessa figura começou a cair ao poucos e me deixou perceber o óbvio: o natal como celebramos só é bom para quem pode comprá-lo.
Lúcio Mauro, saudoso ator e famoso por inúmeros papéis na TV, viveu na década de 1990 o personagem Aldemar Vigário, um contador de histórias hiperbólico que puxava o saco de uma maneira controvérsia do seu professor. Em um episódio da Escolinha do Professor Raimundo (que eu não saberia dizer qual ou em qual temporada), Aldemar Vigário não contou uma história engraçada, pelo contrário.
A história era um poema do alagoano e xará, Aldemar Paiva, que quando eu assisti, já adulto, soou como a punhalada final nas costas do senhor Noel. Peço licença ao ator e ao autor para colocá-lo aqui para que o leitor e a leitora possam ler:
“Não gosto de você, Papai Noel! Também não gosto desse seu papel de vender ilusões à burguesia. Se os garotos humildes da cidade soubessem do seu ódio à humildade, jogavam pedras nessa fantasia!
Você talvez nem se recorde mais. Cresci depressa e me tornei rapaz, sem esquecer no entanto o que passou. Fiz-lhe bilhete pedindo um presente, a noite inteira eu esperei contente, chegou o sol e você não chegou.
Dias depois, meu pobre pai cansado trouxe um trenzinho velho, empoeirado, que me entregou com certa hesitação. Fechou os olhos e balbuciou: “É pra você… Papai Noel mandou…” E se esquivou contendo a emoção.
Alegre e inocente nesse caso, pensei que meu bilhete com atraso chegara às suas mãos no fim do mês. Limpei o trem, dei corda, ele partiu, deu muitas voltas, meu pai sorriu e me abraçou pela última vez.
O resto só eu pude compreender quando cresci e comecei a ver todas as coisas com realidade. Meu pai chegou um dia e disse, a medo: “Onde é que está aquele seu brinquedo? Eu vou trocar por outro na cidade”.
Dei-lhe o trenzinho quase a soluçar, e como quem não quer abandonar um mimo que lhe deu quem lhe quer bem, disse medroso: “Eu só queria ele… Não quero outro brinquedo, quero aquele E por favor, não vá levar meu trem”.
Meu pai calou-se e pelo rosto veio descendo um pranto que eu ainda creio, tão puro e santo, só Jesus chorou. Bateu a porta com muito ruído, mamãe gritou, ele não deu ouvidos, saiu correndo e nunca mais voltou.
Meu pobre pai doente, mal vestido, pra não me ver assim desiludido, comprou por qualquer preço uma ilusão: num gesto nobre, humano, decisivo, foi longe pra trazer-me um lenitivo, roubando o trem do filho do patrão.
Pensei que viajara. No entanto depois de grande, minha mãe, em pranto, contou que fora preso. E como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia. Foi definhando, até que Deus um dia entrou na cela e o libertou pro céu!
Por que você fez isso, Papai Noel?”
Um feliz natal, para quem pode e para quem não pode comprá-lo.
Conhecimento é conquista
-FS
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